quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Federalismo

Importante na dinâmica de transformação do federalismo brasileiro, a democratização, nos anos 1980, deu destaque a elementos da política com vínculos mais regionais. Os desenhos das políticas estaduais foram importantes na estruturação de boa parte dos partidos políticos que despontaram nesta época. Além disso, os governadores de oposição tiveram papel destacado na luta contra o regime autoritário.

Acompanhando um movimento que se deu em um grande número de países, durante a presidência de José Sarney, as discussões em torno da descentralização das políticas sociais foram assumidas por setores progressistas, que objetivavam a diminuição do imenso fosso de desigualdade social que se vivia. Ela era vista como sinônimo de democracia, condição para o aumento da participação popular. A Constituição de 1988 definiu novo arranjo federativo, atribuindo papel mais dinâmico aos estados e municípios, agora com maior capacidade decisória e recebendo fundos do governo nacional. Arretche[1] aponta que a centralização é a concentração de recursos e poder decisório nas mãos de entidades do centro, governo ou agência centrais, sendo considerada antidemocrática, uma vez que possibilitaria a dominação política.  

A descentralização é considerada mais democrática e eficiente, pela proximidade maior com as realidades locais. Alguns a defendem como uma possibilidade de se tornar viável maior participação popular nas decisões públicas. Outros, inspirados no ideário político liberal enxergam nela a possibilidade do exercício da vida cívica, subjugada por um estado centralizador e opressivo. Entretanto, ela não dá garantias de que esses recursos não sejam instrumentos de uma dominação exercida nas extremidades desse sistema.

            O diversificado espectro das realidades regionais presentes no Brasil, levando-se em conta a capacidade de alocação de recursos próprios, bem como sua esfera circunscrita de atuação, tornam necessário o papel do governo central, para que as desigualdades regionais não se aprofundem, compensando as insuficiências locais. Almeida[2], citando Elazar, nos mostra que estruturalmente, os entes federativos seriam imunes à interferência federal. Entretanto, funcionalmente, partilhariam muitas atividades com o governo federal. Aí teríamos a existência de competências comuns ou a superposição de competências. Tomemos, a título de ilustração, o artigo 211 da Constituição Federal de 1998 onde, nos parágrafos de 1 a 3 lemos à descrição das competências de municípios, estados e governo federal. Aos municípios compete atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. As esferas estaduais e federal atuariam, prioritariamente, no ensino fundamental e médio. Assim, temos como lugar comum de atuação o ensino fundamental, para não entrarmos no mérito de discutir-se o termo “prioritariamente”, que, em última análise, não os obriga nada.

            Além da dificuldade do governo federal nas atribuições de papéis dos entes federativos, estados e municípios também não são capazes de definir claramente suas atribuições, já que o texto da lei estabelece estas competências concorrentes. Buscam a descentralização desde que ela seja financiada pelo governo federal. Impressiona, aliás, a quantidade de municípios nanicos, onde claramente é possível notar que interesses outros moveram os processos de emancipação. Em que medida as elites locais se beneficiam com as transferências de recursos federais, seja na predação de rendas públicas, seja no destaque político que conseguem com realizações de fachadas, espetaculosas, que servem para promover verdadeiros clãs de famílias que se perpetuam no poder.

            Uma experiência de reforma descentralizadora interessante de se observar é a que se deu no âmbito da saúde. O SUS, Sistema Único de Saúde, pretende a integração das redes federal, estadual e municipal, além da municipalização do atendimento primário e da alocação de recursos. Partindo-se do centro, uma elite profissional constituiu-se no foco desta realização, possuidora de conhecimento da máquina pública e experiência de governo. Sem dúvidas o potencial valor político da saúde pública serviu para capitalizar apoios de prefeitos, governadores, parlamentares e secretários de saúde, interessados nos votos do grande eleitorado. Fundamental para o sucesso do SUS é a disposição e a capacidade dos municípios de assumirem plenamente suas funções no sistema, ao invés de simplesmente adquirirem, como política de saúde, ambulâncias, para despejarem os pacientes em hospitais de outras regiões, alterando, eventualmente, uma demanda esperada por essas unidades. Onde a municipalização avançou, nos diz Almeida, os governos locais encararam uma demanda em expansão que aumentou significativamente os gastos em saúde. Não por acaso, pode-se notar, no tempo, estas dificuldades de implementação até por questões políticas.

No ano de 2005, os grandes hospitais do governo federal, que foram municipalizados, na cidade do Rio de Janeiro, voltaram para o controle federal, sob a alegação de má gestão por parte da prefeitura. Entretanto, uma vez que isto se deu, notou-se que a gestão federal, nos dois primeiros anos, deixou muito a desejar. Conviveu-se com paradoxos interessantes: ao mesmo tempo em que substituíam o sistema de informática do Hospital do Andaraí, não havia capas para os prontuários. Recentemente, o Tribunal de Contas da União apontou deficiências em programas de saúde no Estado do Rio de Janeiro, em três municípios. A dificuldade maior foi a integração da Atenção Básica aos outros níveis de atenção á saúde, muitas vezes por falta de estrutura dos próprios municípios. Mas gastos elevados com medicamentos também aparecem, o que demonstra a predação de rendas públicas como presença neste processo de descentralização. Aliás, com centralização ou descentralizado, a predação ocorre.

Percebemos, assim, que o encaminhamento da reforma do estado brasileiro no sentido da descentralização, longe de diminuir o papel do governo federal, depende de uma atuação reguladora e condutora das ações nas esferas menores. Função, aliás, que ganha importância em países como o Brasil, com diferenças regionais significativas.

 



[1] Arretche, Marta T. S..Mitos da descentralização – Mais democracia e eficiência nas políticas públicas?. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n° 31, Junho de 1996.

[2] Almeida, Maria Hermínia Tavares. Federalismos e Políticas Sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n° 28, Junho de 1995, p.89.

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